09/09/2022 às 10h13min - Atualizada em 12/09/2022 às 00h00min

Os lados da moeda sobre o rol de procedimentos dos planos de saúde

Foram apresentados no Congresso alguns projetos com o escopo de que o rol seja uma “referência básica”

SALA DA NOTÍCIA MP News

 

Sandra Franco*

No último mês de junho, os usuários dos planos de saúde foram surpreendidos com a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que entendeu pela taxatividade, como regra, do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde (RPEs) da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O que esse posicionamento significa na prática? Tornou-se mais difícil aos usuários terem êxito, ao buscarem o Poder Judiciário,  para acessar qualquer procedimento que não estivesse descrito na lista taxativa da agência reguladora.

Até esse momento da decisão do STJ, desde que houvesse indicação médica fundamentada, havia a possibilidade de custeio pelas operadoras de um tratamento fora do rol, segundo entendimento dos magistrados presente em farta jurisprudência, inclusive do STJ.

Ao sentir a restrição ao direito de judicializar, os usuários começaram a se manifestar de forma contrária ao entendimento firmado pelo STJ sobre rol da ANS ser taxativo, requerendo que o rol continue a ser exemplificativo. As alegações foram que muitas coberturas seriam negadas de imediato com a justificativa de ser o rol taxativo. Muitos também afirmaram  também que haveria sobrecarga no SUS, que precisaria absorver a demanda remanescente da não cobertura dos planos. O que, na verdade, já ocorre, inclusive de forma a fazer o SUS credor de alguns milhões reais das operadoras.

Na sequência, para dar forma à insatisfação dos usuários, foram apresentados no Congresso alguns projetos de lei com o escopo de que o rol seja uma “referência básica” para a cobertura dos planos de saúde, ou seja, volte a ser exemplificativo. Um deles, dentre oito, foi aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Congresso.

Pelo texto do PL 2.033/2022, os planos de saúde poderão ser obrigados a financiar tratamentos de saúde que não estiverem na lista mantida pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Para tanto, faz-se necessário que haja uma das seguintes situações: tenha eficácia comprovada cientificamente; seja recomendado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec); ou seja recomendado por, pelo menos, um órgão de avaliação de tecnologias em saúde com renome internacional.

O projeto beneficiará, caso sancionado, cerca de 49 milhões de usuários de planos de saúde e famílias. Dentre esses, muitos já buscaram o Judiciário por certo.  Para se ter uma ideia de números, só em São Paulo, nos últimos 10 anos, as ações aumentaram em 391%, segundo uma pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde, da Faculdade de Medicina, da USP. Nos casos julgados em segunda instância, entre as queixas que mais levam os consumidores à Justiça, estão problemas com exclusões de cobertura e negativas de tratamento, que representam 60,4% das decisões.

Necessário, porém, observar que há dois lados com direitos que precisam ser reconhecidos pela sociedade. Não há vilões e mocinhos...ou vilões e vítimas. As operadoras de planos de saúde fazem parte da chamada saúde suplementar, a qual, por sua vez, faz parte do chamado Sistema Nacional de Saúde. No entanto, as operadoras são pessoas de direito privado, que cujo negócio é a Saúde, ou seja, necessário que haja lucro. Também é relevante considerar que é firmado um contrato entre as partes (usuário e operadoras), o qual traz direitos e obrigações para ambas as partes, firmado de forma livre. Na verdade, a Saúde Suplementar exerce um importante papel no sistema, já que o SUS não comportaria o atendimento de todos os cidadãos de forma eficiente.

Também se deve considerar que as operadoras de planos de saúde têm como fundamento principal o chamado mutualismo. Isso significa que todos os usuários de uma chamada carteira (ou grupo) estão pagando por tudo o que todos usam, trata-se de os próprios usuários financiarem seus cuidados de saúde. Alguns utilizam sempre seus planos de saúde, outros, excepcionalmente.  Alguns possuem doenças crônicas; outros, não. E, em razão dessa diversidade de riscos, é possível manter o sistema em funcionamento. No entanto, quando aumenta a chamada sinistralidade, muitas pessoas usam ou se algumas usam para tratamentos muito caros, há um desequilíbrio financeiro entre a previsão do risco e as efetivas despesas.

Também se deve considerar, ao se falar sobre a saúde suplementar, outros fundamentos importantes: a livre iniciativa e a segurança jurídica. No que se refere à segurança jurídica, é essencial que a legislação não mude frequentemente, e, em se tratando de saúde suplementar, já existe uma agência criada exatamente com o escopo de regulamentar as relações no setor de saúde e fiscalizar o sistema. Regras claras são essenciais quando se decide empreender.

A Constituição dispõe, em seu artigo 196, que todos devem ter acesso à saúde e cabe ao Estado criar políticas públicas que reduzam o risco da doença, bem como garantir o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação. Entretanto, essa mesma garantia, de acesso igualitário e universal, não é obrigação  do sistema de  saúde suplementar, daí que, em alguns casos pontuais, o Judiciário é chamado a, de forma coercitiva, obrigar que operadoras cubram certos tratamentos, em especial quando o direito à vida precisa estar sob tutela do Estado, ainda que não haja previsão no rol da ANS.

Fato é não se pode, dizer, portanto, que não haveria nenhuma margem para que, em casos excepcionais, o usuário pudesse recorrer à judicialização. Isto porque que  a decisão do STJ incluiu algumas situações em que, tratamentos poderiam ser cobertos: quando não houver  substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS (ii) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da saúde suplementar; (iii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iv) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e Natjus) e estrangeiros.

Ainda assim, nesse momento, usuários e legisladores têm a aprovação do PL no Congresso Nacional. As novas regras dependem apenas da sanção presidencial para entrar em vigor e deixar de valer o rol da ANS como taxativo, tal qual desejava o STJ e as Operadoras.

Mesmo com a futura lei, será provável que muitos casos continuem desaguando no Judiciário, pois as particularidades das enfermidades e dos tratamentos são diversos. Derrubar o rol  taxativo abrirá uma série de novas abas e possibilidades de jurisprudências para novos e antigos casos.

Algumas vozes se pronunciaram de forma contrária à volta do rol exemplificativo. A ANS manifestou-se no sentido de que o rol exemplificativo, da forma como o texto do PL apresenta, provoca a “ruptura do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos”, com impactos na ordem econômica. Outra voz que se posicionou contrária à derrubada do chamado rol taxativo proposta pelo STJ foi do próprio Ministro da Saúde que considera que a legislação apresenta de forma objetiva o processo para incorporação de novas tecnologias em saúde, bem como apontou que é necessário avaliar o impacto da ampliação ao acesso com relação aos custos que certamente serão repassados aos usuários.

A questão é como tornar sustentável o setor de saúde, de forma a que todos possam acessar o sistema quando necessário? Primeiro, essencial promover a saúde (e não apenas tratar a doença). Segundo, no Sistema Público necessário sempre buscar uma melhor utilização de recursos; no Sistema Suplementar, equilibrar a balança financeira de forma a que os planos de saúde visem a atenção primária de saúde e haja recursos para novas tecnologias serem incorporadas, com mais brevidade, para os tratamentos destinados aos casos mais complexos, aos doentes crônicos e aos pacientes com doenças raras.

Ampliação de coberturas imposta pela lei seria o caminho? Quem pagará a conta? Parece que, em breve, a história irá responder.

*Sandra Franco é consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, doutoranda em Saúde Pública, MBA-FGV em Gestão de Serviços em Saúde, diretora jurídica da Abcis, consultora jurídica da ABORLCCF, especialista em Telemedicina e Proteção de Dados, fundadora e ex-presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São José dos Campos (SP) entre 2013 e 2018


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