Há momentos na história em que a arte transcende seu tempo e se transforma em advertência. Raul Seixas, morto em 1989 aos 44 anos, pertence a essa rara categoria de artistas cujas obras não apenas envelhecem bem — elas ganham o título de atemporais. Sua obra é gigantesca e aqui abordaremos apenas uma minúscula parte dela fazendo um paralelo com o dia que escrevo essa coluna.
Quando ele cantava “a solução pro nosso povo eu vou dar, negócio bom assim ninguém nunca viu, a solução é alugar o Brasil”, não estava fazendo apenas rock contestador ou sátira política. Estava mapeando o DNA de um país que nunca conseguiu se livrar da condição de colônia, apenas trocou os senhores coloniais por novos patrõezinhos.
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Quero fazer parte!O Brasil de hoje – não escreverei 2025 porque creio que não importe o ano ainda estaremos nessa – vive exatamente o cenário que Raul antecipou com uma precisão que beira o sobrenatural. A discussão sobre venda de terras para estrangeiros voltou ao Congresso, projetos de lei flexibilizam restrições que deveriam ser intocáveis, e o debate sobre minerais críticos — lítio, cobalto, grafeno, nióbio, entre outros revela que continuamos sendo um fornecedor de matéria-prima barata que entrega recursos naturais estratégicos a empresas estrangeiras enquanto o poder geopolítico global se redefine, e ainda “recompramos” nossas matérias-primas muito mais caras porque “alguém de fora as lapidou”. “Os estrangeiros eu sei que eles vão gostar, tem o Atlântico, tem vista pro mar, a Amazônia é o jardim do quintal”…
Mas talvez a música mais sombria e profética do repertório de Raulzito seja “Metrô Linha 743”, composta após ele ser preso, torturado e exilado em 1974. A letra narra um encontro casual onde policiais param o protagonista não para pedir documentos, mas para perguntar “o que você estava pensando”. Essa frase, que soava como distopia na época do regime militar, encontra eco arrepiante no Brasil de hoje, onde há quem dite que redes sociais devem “retirar imediatamente conteúdos ilegais” e podem ser responsabilizadas por postagens de usuários, tornando-se o único país no mundo em que o judiciário impôs sozinho as regras de controle do discurso nas redes sociais. Assim como na música de Raul, onde os agentes queriam saber “o que você estava pensando”, hoje o estado brasileiro arroga-se o poder de definir os limites do discurso permitido. A frase mais assustadora da canção — “o prato mais caro do melhor banquete é o que se come cabeça de gente que pensa” — ecoa na regulamentação das big techs, onde a justificativa é sempre a proteção, mas o resultado é o controle do pensamento dissidente. Mudaram as vestimentas, mudaram os métodos, mas a essência autoritária permanece intacta.
A melancolia existencial de “Ouro de Tolo” capturou um fenômeno que se massificou na era digital de maneira que Raul jamais poderia imaginar em sua magnitude. Quando ele cantava sobre o conformismo burguês — onde o protagonista “devia estar contente” com seu emprego e salário — e sobre a busca por “discos voadores” como alternativa a uma vida repetitiva e sem sentido, ele estava diagnosticando a alienação fundamental do cidadão moderno. O “disco voador” virou algoritmo — uma promessa de transcendência que nunca chega, mas mantém as pessoas presas em bolhas digitais
“Eu sou a mosca que pousou em sua sopa” tornou-se um dos bordões mais marcantes da música brasileira, mas sua dimensão política é constantemente esquecida ou deliberadamente ignorada. Raul se definia como a mosca — o elemento incômodo que não pode ser ignorado ou eliminado, mesmo que esmagado. Essa metáfora encontra ecos diretos nos movimentos de protesto contemporâneos, onde manifestantes que vão às ruas são as novas “moscas” que pousam na “sopa” do sistema político.
Já em “O Dia em que a Terra Parou”, que descrevia um mundo onde “ninguém saiu de casa” e “o empregado não saiu pro seu trabalho, pois sabia que o patrão também não tava lá”. Durante a pandemia de COVID-19, essa música virou trilha sonora espontânea do lockdown, como se Raul tivesse previsto até mesmo os detalhes mais específicos de uma crise “política sanitária” fez o império do medo se revelar e a busca por uma “Sociedade Alternativa” baseada no princípio “radical” do “faz o que tu queres, pois é tudo da lei” virou até o que você pode comprar, trabalhar…
O que torna as canções de Raul Seixas tão atuais não é apenas sua capacidade de antecipar eventos específicos, mas sua compreensão profunda das contradições estruturais da sociedade brasileira que nenhuma reforma superficial consegue resolver. Ele identificou os nódulos problemáticos que continuariam a se manifestar geração após geração.
Mais de três décadas após sua morte, Raul Seixas permanece “a mosca na sopa” da consciência nacional — um incômodo necessário que nos força a encarar realidades que preferíamos varrer para debaixo do tapete. Suas músicas não eram apenas entretenimento ou protesto; eram radiografias brutalmente honestas de um país que insiste em repetir seus padrões autodestrutivos com uma regularidade quase religiosa. A tragédia é que, apesar de toda a lucidez Raulseixista, o Brasil continua caminhando exatamente na direção que ele denunciou. A ironia amarga é que, cinquenta anos depois, ainda estamos “alugando o Brasil”, ainda temos “canibais de cabeça” perseguindo quem pensa diferente, e ainda buscamos “discos voadores” para nos salvar de uma realidade que nós mesmos criamos e mantemos por pura covardia existencial.
Raul Seixas não foi apenas um músico rebelde, um místico excêntrico ou um roqueiro maluco. Foi um analista social de primeira grandeza, cujo diagnóstico sobre o Brasil continua dolorosamente preciso décadas depois. Ele teve a coragem de dizer verdades que os “sérios” acadêmicos, políticos e formadores de opinião preferiam esconder atrás de eufemismos, jargões técnicos e narrativas reconfortantes.
Raulzito segue vivo porque suas músicas são bisturis que cortam fundo nas feridas abertas do Brasil, e o fato de que em 2025 suas letras pareçam ter sido escritas ontem não é homenagem ao artista — é condenação brutal ao país que aprendeu absolutamente nada com suas advertências.
A obra de Raul Seixas permanece como um espelho cruel e necessário que, apesar de todas as transformações tecnológicas e políticas, continua preso aos mesmos dilemas existenciais que ele tão brilhantemente diagnosticou há meio século. E se suas letras continuam atuais, além do fato dele ter sido genial é porque nós, como nação, somos patologicamente incapazes de aprender com nossos próprios erros, preferindo repetir os mesmos padrões destrutivos – somos tão mais involuídos…
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