No silêncio da alma, onde as feridas não sangram visivelmente, a violência psicológica deixa marcas profundas e devastadoras. Renata, por exemplo, viveu seis anos de casamento que ela descreve como “seis anos de terror”. Ela ouvia frases que eram “uma pancada na alma”, como “ninguém ia me querer só ele” ou que estava “acima do peso”, sempre minando sua autoestima e a fazendo acreditar que era “louca”. Casos como o de Renata não são isolados; o crescimento das denúncias de violência psicológica no Brasil é assustador, com quase 880 mil denúncias só neste ano, representando um aumento de quase 60% no primeiro semestre em comparação com o mesmo período de 2023.
O que é a Violência Psicológica e Como ela se Manifesta?
Historicamente, a violência contra a mulher tem sido associada principalmente à agressão física, que deixa marcas visíveis. No entanto, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) detalha outros tipos de violência, incluindo a patrimonial, sexual, moral (como xingamentos) e, crucialmente, a psicológica – muitas vezes confundida com amor.
A violência psicológica é definida por lei como “causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação”. Este crime, previsto no artigo 147B do Código Penal, foi inserido na legislação penal brasileira em 2021.
É importante notar que a violência psicológica é frequentemente um crime habitual, não ocorrendo em um único ato, mas sim através de um padrão comportamental repetitivo e contínuo que mina a vítima até que sua capacidade de autodeterminação seja afetada. O agressor ataca as qualidades e vulnerabilidades da mulher, seja sua religião, autonomia financeira ou laços familiares, isolando-a e fazendo-a adoecer emocionalmente.
A Era Digital e o Agravamento da Violência Psicológica Com a constante evolução da tecnologia e da inteligência artificial (IA), a violência psicológica ganhou novas e perversas dimensões. Em abril deste ano, entrou em vigor a Lei nº 15.123/2025, que adicionou uma causa de aumento de pena para o crime de violência psicológica contra a mulher quando cometido utilizando instrumentos tecnológicos, como inteligência artificial, para alterar a voz ou a imagem da vítima. Esta alteração legislativa reflete a crescente dificuldade em identificar o que é real do que é falso nas redes sociais.
A motivação para esta mudança veio de casos emblemáticos que demonstram o grave impacto dessas manipulações:
• O caso da atriz Ísis Valverde, cujas fotos de biquíni foram alteradas digitalmente para mostrá-la nua e divulgadas online, sem seu consentimento.
• Uma situação em uma escola no Rio de Janeiro, onde um colega alterou imagens de 20 adolescentes, retirando suas vestes e divulgando-as para outros alunos. Esses exemplos ilustram a violação da intimidade e a necessidade urgente de repressão a essas condutas. Pesquisas revelam que 96% das imagens geradas por deepfakes (falsidades profundas criadas por IA) são pornográficas, e 99% das vítimas desse tipo de manipulação são mulheres. Esse índice alarmante evidencia a necessidade de atuação para prevenir tais condutas, muitas vezes enraizadas em um machismo estrutural.
Desafios na Identificação e Aplicação da Lei Apesar do avanço legislativo, a aplicação efetiva da lei enfrenta desafios práticos. Para que a causa de aumento de pena por uso de tecnologia seja aplicada, é necessário provar que houve alteração da imagem ou do som da vítima para causar o dano psicológico. Isso geralmente exige perícias judiciais, um processo que pode ser demorado e adicionar lentidão a processos judiciais já extensos, especialmente aqueles envolvendo violência contra a mulher. Historicamente, a violência psicológica é menos enfatizada no atendimento às vítimas.
Há uma dificuldade, inclusive por parte de policiais militares, em identificar e reconhecer a violência psicológica como algo que pode ser denunciado e enquadrado pela Lei Maria da Penha. Muitas vezes, a polícia militar age com a noção de que a violência física é a única forma legítima de violência, desconsiderando discussões ou desentendimentos como violência psicológica se não houver marcas visíveis. Isso resulta em subnotificação e descrédito para com a violência psicológica. Além disso, o crime de violência psicológica é subsidiário, o que significa que ele cede lugar a crimes mais graves. Se a conduta do agressor configurar um crime com pena maior (como calúnia reiterada em redes sociais ou pornografia infantil), a violência psicológica não será o crime principal imputado.
Como Agir e Quais São os Instrumentos de Proteção?
Diante de uma imagem ou áudio manipulado e divulgado, o primeiro passo para a vítima é manter a calma e coletar todas as provas possíveis, como prints e salvamento de conteúdos, para levar às autoridades policiais e iniciar uma investigação. Embora a identificação de deepfakes seja difícil até para profissionais, o STF possui cartilhas com dicas para observar detalhes como o fundo da imagem, tonalidade da pele, sincronia labial e ausência de características físicas conhecidas (como tatuagens). Em muitos casos, porém, será indispensável a perícia especializada. Para proteger as vítimas, o sistema de justiça tem implementado o uso de tecnologia:
• Programa Sinal Vermelho: Mulheres em situação de violência podem mostrar um “X” vermelho na palma da mão em farmácias ou estabelecimentos públicos para sinalizar que precisam de ajuda, e o atendente pode acionar as autoridades policiais.
• Botão do Pânico: Em estados como o Paraná, existe um recurso tecnológico em aplicativos da Polícia Militar (como o 190 PR), que permite à vítima com medida protetiva acionar um botão que grava áudio por um minuto e envia o alerta diretamente à polícia, que é acionada para o local.
• Monitoramento de Agressores: Recentemente, programas foram lançados para aprimorar o controle de medidas protetivas, utilizando tornozeleiras eletrônicas para agressores e dispositivos para vítimas que emitem um alarme caso o agressor viole o raio de proteção, dando à vítima mais tempo para agir.
O Papel da Sociedade e das Instituições
A legislação penal, embora essencial, atua principalmente na repressão de condutas. Para uma mudança efetiva, é fundamental que a sociedade e as instituições atuem na prevenção. Isso inclui:
• Conscientização: Mídia e instituições de ensino têm um papel crucial em conscientizar sobre o impacto psicológico da violência e o uso ético da inteligência artificial e novas tecnologias.
• Combate a Deepfakes e Fake News: É necessário combater a disseminação de informações falsas e manipuladas que causam prejuízos à sociedade.
• Educação desde a base: Crianças e adolescentes precisam aprender a lidar com as novas tecnologias de forma ética e construtiva, combatendo o “bullying digital”.
A violência psicológica, que assola a sociedade e pode ser transmitida intergeracionalmente, precisa ser tratada como um grave problema de saúde pública. A mudança cultural é fundamental, e o direito, embora venha a reboque, está se adaptando para acompanhar essa transformação. A luta contra a violência psicológica é como construir um farol em uma tempestade silenciosa. As “cicatrizes invisíveis” que ela causa são tão reais quanto as visíveis, e a luz da conscientização, da educação e da tecnologia, quando usada para o bem, pode guiar as vítimas para a segurança e para que suas vozes sejam finalmente ouvidas e valorizadas.
Escrito por Bruna Sobczack. Especialista em Direito Imobiliário, Notarial, Registral e Tributário.