Artigo – Juízes sem rosto: riscos à defesa e à democracia 

Iara

A recente instituição da Vara Estadual de Organizações Criminosas pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), por meio da Resolução nº 7/2025, acendeu um alerta grave sobre o estado de direito, o devido processo legal e a própria higidez democrática do processo penal brasileiro. A criação de um colegiado de juízes com identidade oculta — os chamados “juízes sem rosto” — compromete frontalmente garantias constitucionais da ampla defesa, do contraditório, da publicidade e do juiz natural. A medida, embora justificada pela necessidade de proteção aos magistrados e combate ao crime organizado, constitui um retrocesso autoritário disfarçado de eficiência institucional.

Esse modelo, inspirado em experiências da Colômbia e do Peru nos anos 1990, nasceu em contextos de enfrentamento a cartéis de droga e organizações paramilitares violentas. Todavia, essas experiências foram duramente criticadas pela comunidade internacional e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

O modelo adotado pela referida Vara Estadual afronta diretamente diversos dispositivos constitucionais e legais: violação ao princípio do juiz natural, ofensa à publicidade e transparência, cerceamento da defesa e das prerrogativas da advocacia.

Como bem advertiu Rui Barbosa, “a pior ditadura é a do Poder Judiciário, pois contra ela não há a quem recorrer”. A atuação de um magistrado invisível, sem rosto, sem nome e sem responsabilidade funcional visível, cria um campo de arbítrio incontrolável.

A advocacia criminal, que já é constantemente vilipendiada por um discurso institucional que a confunde com a criminalidade, vê-se agora acuada por estruturas que dificultam a própria existência da defesa técnica. Afirmar, como advogada criminalista, que é insustentável contestar uma decisão cuja autoria é sigilosa, não é exagero — é constatação. Trata-se da negação da própria essência do processo penal acusatório.

A Lei nº 12.694/2012, utilizada como fundamento pela Resolução, não prevê anonimato de magistrados, mas apenas a possibilidade de atuação colegiada em casos de risco à integridade dos juízes. Não se confunde colegialidade com anonimato. A construção de um sistema impessoal no qual o julgador se esconde atrás de um selo genérico de uma vara especializada afronta não apenas a lei, mas a própria ética republicana que deve reger os atos estatais.

A criação dessa vara especializada abre perigoso precedente. O anonimato institucionalizado pode, em breve, ser replicado para outros tipos de delitos considerados “sensíveis” — como crimes contra a administração pública, contra jornalistas, ou mesmo para casos de grande repercussão social. Tal lógica rompe com os fundamentos do devido processo legal e sinaliza a adoção de um modelo autoritário, incompatível com a Constituição de 1988.

A criação da Vara Estadual de Organizações Criminosas com juízes sem rosto é inconstitucional, antirrepublicana e perigosa. Viola direitos fundamentais da defesa, despreza a publicidade dos atos processuais, fere o devido processo legal e compromete o próprio funcionamento do sistema acusatório.

O que está em jogo não é apenas uma questão de estrutura judicial, mas a própria democracia. Não se combate o crime organizado com estruturas de exceção. A história já nos ensinou — a duras penas — que sacrificar garantias fundamentais em nome de uma suposta eficiência é abrir mão do Estado de Direito.

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