14/03/2019 às 16h51min - Atualizada em 21/03/2019 às 16h50min

Com quatro lugares vagos há três anos, Academia Francesa de Letras reclama da falta de candidatos

 

Honoré de Balzac tentou e não conseguiu. Émile Zola bateu nas portas dezenas de vezes, mas nunca foi admitido. Paul Verlaine também não recebeu nenhum voto para entrar. Victor Hugo mesmo só conseguiu após muito esforço e várias tentativas fracassadas. A Academia Francesa de Letras (Académie Française), o clube de elite dos Quarenta Imortais -- como seus membros são conhecidos --, designada como guardiã oficial da língua francesa, não admite qualquer um.

A academia é tão exclusiva que a maioria dos grandes escritores franceses nunca conseguiram uma cadeira.

Quatro postos vitalícios estão vagos desde dezembro de 2016, mas os membros atuais ainda não encontraram substitutos "adequados". Eles votaram em três ocasiões, a mais recente no final de janeiro, mas em nenhuma delas se formou a maioria necessária.

Alguns membros da academia afirmam que essa paralisação é um reflexo exato da situação da França, que se encontra dividida entre o país orgulhoso e determinado a sobreviver a todo custo, e o que luta para se adaptar a um século XXI definido pela globalização, pela migração e pela agitação social, como é o caso agora dos gilets jaunes. "Somos o reflexo da sociedade, e ela está questionando a si mesma", disse Amin Maalouf, romancista franco-libanês que possui uma das cadeiras, ao jornal Le Monde.

A Academia Francesa é antiga: foi fundada em 1634 pelo cardeal Richelieu com o propósito de promover e proteger a língua francesa, e não tem nenhuma intenção de se apressar em escolher seus membros. "Ela é uma velha dama, é muito sensível", comentou Dany Laferrière, outro membro, ao mesmo Le Monde.

Na verdade, a academia tem pouco de dama: a maioria dos membros é feita de homens brancos e velhos. Só há cinco mulheres e um negro -- justamente Laferrière, de origem haitiana. As reuniões dos membros -- que, juntos, formam uma idade média acima dos 70 anos -- acontecem abaixo da elegante cúpula do século XVII do Instituto da França, em Paris.

As notícias sobre a recusa dos candidatos são geralmente públicas: o ex-ministro da Educação, Luc Ferry, foi um dos postulados que não conseguiram entrar na academia. Além de sua própria renovação, a principal tarefa da instituição é atualizar o dicionário definitivo de francês, cuja redação se dedica desde o século XVII. O trabalho é tão "sagrado" que qualquer atualização é publicada como documento oficial do governo: elas modificam todos os processos de tradução simultânea, os papéis do Estado e mesmo a redação dos jornais.

No final de fevereiro, a grande notícia vinda da academia foi a aprovação da feminização dos títulos profissionais -- um verdadeiro avanço para uma academia que resistiu por anos a essa adaptação e que viu, nos últimos anos, a língua corrente usar as mudanças mesmo sem a autorização dos "imortais". No francês da academia, mesmo uma mulher era chamada de "professeur".

Os membros da academia se defendem dizendo que não é possível encontrar verdadeiros defensores do idioma e dos valores culturais da França, e que é por isso que a crise é mais profunda do que parece. "É um absurdo. A característica especial da França era que todos se reconheciam na literatura. Agora só se escreve para a universidade, para esse grupo ou para outro. É deplorável. As pessoas até estão lendo mais, mas só leem coisas estúpidas. A academia é um barco a deriva em um mar seco", vociferou Jean-Marie Rouart, crítico e romancista que possui uma cadeira desde 1997.

A escritora Dominique Bona, discorda: para ela, há vários nomes da literatura francesa que poderiam ter um lugar na academia e que, para ela, é uma decepção que não estejam. É o caso dos dois últimos Nobel de Literatura do país, Patrick Modiano e Jean-Marie Gustave Le Clézio, assim como o de Michel Houellebecq, considerado um dos romancistas europeus mais importantes da contemporaneidade. "A gente teve candidatos extraordinários, verdadeiras opções. Pessoalmente, me decepciona que a academia os tenha rechaçado. Será uma doença francesa? O mau humor que nos rodeia contaminou a academia?", lamentou ao jornal estadunidense Washington Post.

O cerimonioso mundo da academia parece estar a anos-luz de distância do fenômeno atual dos gilets jaunes, cujas manifestações levam mais a revolução do que a preservação. A natureza incomum da missão da entidade, em um mundo em que grande parte do que se celebra do passado está caindo, causa pessimismo entre alguns membros. Alguns desconfiam até mesmo que os "Imortais" continuarão existindo. "A sociedade francesa continuará?", questionou Rouart, para em seguida responder: "A burguesia está morrendo. Antes, os membros da academia assistiam as cenas. Agora, nem sequer se organizam cenas. Acabou".


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